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Mostrando postagens de janeiro, 2019

Crônicas do pós-vida

Numa dessas noites perfeitamente normais, Júlio se deitou. Quando acordou, olhou para baixo e não tardou a constatar o óbvio: estava morto. Comicamente morto, de olhos arregalados e língua para fora, como nos desenhos, mas aquilo lhe trazia certo alívio – havia chegado tarde em casa e a megera de sua mulher certamente seria, pela manhã, tão intragável quanto as doses do caro whisky que havia se forçado a tomar, de modo que a sua morte era verdadeiro livramento. O motivo da morte não importava muito. O que importava mesmo era que lá estava ele, pairando no ar, assistindo aos corpos deitados na cama, ouvindo os gatos miando em orgias nos telhados, enquanto toda a casa fazia silêncio para o som da corrente elétrica passando pelos fios de energia num zumbido constante e acolhedor que parecia desaguar com leveza nos motores da geladeira. E tudo aquilo lhe fazia pensar em aviões.

Alguns poemas curtos

No dia em que eu for embora, Quero ir sem nada E deixar de lado todo esse peso Guardado numa mala, Que deverá ser jogada do alto de um precipício Até que exploda e meus problemas morram Junto comigo Lentilhas não me atraem. O meu negócio é feijão Preferencialmente com arroz E entupido de farinha Acompanhado de um peixe bem frito Que é pr’eu não esquecer da infância Ontem à noite voei sozinho. Não que já tenha voado acompanhado Mas queria registrar a informação Caso alguém queira saber Talvez eu esteja Pegando o jeito de escrever De novo Ou talvez eu seja horrível E não saiba escrever bem Assinado, Um ovo Perdoem-me a indisposição Mas é que hoje eu acordei triste E a tristeza já tomou conta de mim Em tal medida Que eu já não sei ser outra coisa Só sei ser triste, E ocasionalmente chato (Às vezes ambos) Escrevo poemas curtos ...

Ricardo e Tereza - Parte 1

“Quantos anos você tem?”, perguntou Ricardo, procurando aqueles olhinhos castanhos. “19”, disse Tereza, olhando para a direção contrária, completamente desinteressada. Ricardo se ajeitou na grama, pigarreou e continuou: “Ah, legal, eu tenho 22”, disse, pensando no que diria a seguir. Ele estava nervoso e não sabia direito como conversar com garotas. “Elas são como garotos”, todos lhe falavam, mas aquilo não era verdade: perto de garotas ele deixava de ser um garoto e se tornava algo diferente do que era ao lado de outros meninos (e, ao que tudo indicava, isso era um problema delas, não dele). “Você não acha essas luzes meio... estranhas?”, ela sussurrou como que para o sol, que se punha e desabava sobre o oceano, enegrecendo o verde da grama sobre a qual estavam sentados. Havia muita gente ao redor, mas, por razões diferentes, nenhuma daquelas pessoas interessavam a Ricardo e a Tereza. Tereza contemplava o milagre da natureza e Ricardo contemplava o milagre de Tereza, ambos p...

Prelúdio

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Quem escreve sabe que esta não é uma tarefa fácil - ou talvez eu seja apenas um mal escritor. Eu não sei sobre o que irei escrever aqui, mas creio que a maioria de meus posts serão histórias (provavelmente curtas) e análises de mim mesmo e de meu mundo. Em carne viva Trouxe para o ano que inicia o ocaso criativo que tomou conta de mim a partir de meados de 2018. Dizem que eu tenho potencial para ser feliz e, como potenciais existem para serem realizados, escrevo para realizar o mundo que tenho na cabeça - de alguma forma, escrevo para realizar-me. Sinto que não tenho existido. Desconheço-me. Sinto que não sei mais escrever, o que faz sentido levando em conta que também sinto que não sei mais ler, ouvir ou assistir. A esses quatro pilares de minha vida (a escrita, a leitura, a música e o cinema/televisão) somaria o pensamento e a interação, mas também acho que não sei mais pensar ou interagir. Os enlatados que tenho consumido compulsivamente transformaram-me em a...